Médica defende o uso de medicamento à base de maconha como alternativa para doenças de difícil controle

Saúde

04/09/2022 às 07:00

Desde 24 de agosto, passou a valer em Mato Grosso a lei da Assembleia Legislativa que regulamenta o uso de medicamentos derivados da maconha na rede pública. 

Na prática, remédios à base de canabidiol, um dos componentes da planta da maconha, podem passar a ser distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para pacientes com prescrição médica. Cabe, agora, ao Ministério da Saúde a inclusão do medicamento para ser tratado pelo sistema.

Remédios à base de maconha são polêmicos no Brasil, pois seus benefícios medicinais ainda estão sendo estudados.  A médica neurologista pediatra Viviane Quixabeira é uma das poucas médicas em Cuiabá que receita o canabidiol.

Ela confirma que mais estudos são necessários, mas diz que o canabidiol, principal remédio derivado da Cannabis sativa, tem muitos benefícios para alguns pacientes. "O que temos de evidência científica é que o canabidiol realmente é efetivo em alguns tipos de epilepsia".

Confira os principais trechos da entrevista:

 

MidiaNews – Recentemente, a Assembleia Legislativa tomou a decisão de obrigar o Governo do Estado a oferecer canabidiol na rede pública. O que achou dessa decisão?

 

Viviane Quixabeira – Tem que ser fornecido, porque para patologias que já têm evidências, é uma opção de tratamento. Temos que dar opções de tratamentos para as famílias. Acredito que o canabidiol é uma medicação promissora para algumas patologias e crianças, então realmente ela tem que estar disponível como opção.

 

Como uma medicação de qualidade tem todo o processo de extração da planta, acaba sendo uma medicação cara. Infelizmente, muitas pessoas não têm condição de comprar ou não têm um plano de saúde.

  

MidiaNews – O canabidiol vicia?

 

Viviane Quixabeira – Os estudos mostram que não. Nos testes que foram realizados em camundongos até o momento, o canabidiol não tem nenhum efeito viciante ou de dependência.

 

Já o THC não tem definição na comunidade científica, é bem duvidoso. A maioria dos estudos foram feitos com canabidiol e, quando a medicação está em estudo, ela é usada em concentração muito baixa, tipo 0,2%, então ainda não temos esse dado, permanecendo vários pontos de interrogação.

 

MidiaNews – Por que os medicamentos à base de canabinoides são tão polêmicos?

Viviane Quixabeira – Por conta das evidências. É muito difícil, nos dividimos muito entre prescrever algo que não está documentado na literatura e acabar prescrevendo por uma preferência ou quando a família quer tentar.

Às vezes, tem mães que estudam muito. Sobre o autismo, não há nada cientificamente documentado que o canabidiol vai me ajudar como primeira opção. Se a família chega e fala que quer usar canabidiol, não é a minha primeira opção. Para crises convulsivas, também não é a primeira opção.

Não é de bom tom um médico prescrever algo que ainda não tem todo esse embasamento na comunidade científica, mas tem médicos que agem de outra maneira e defendem o uso, porque, na atuação dele, ele viu resultados.            

 

MidiaNews – Há pessoas que fazem uma relação entre o uso recreativo da maconha com o seu uso medicinal...

Viviane Quixabeira – Não tem nada a ver. O uso recreativo da maconha tem vários efeitos prejudiciais, tem vários efeitos psicotrópicos, alucinógenos, narcórticos.

O canabidiol é uma substância dentro de uma infinidade de substâncias da Cannabis sativa. Então, ela realmente é extraída de forma delicada para conseguir pegar aquela substância específica e usar na criança para fazer uso de algum sintoma clínico.

São coisas bem diferentes. O que a família tem que saber é que não estamos prescrevendo a planta em si, estamos prescrevendo uma substância que está dentro da Cannabis sativa e que tem estudos científicos que mostram os efeitos de medicação com melhora clínica em diversas patologias.

Quando a família tem preconceito, digo que não é assim que funciona. É uma medicação, não é a maconha em si. Estamos pegando um componente que foi estudado, para o qual existem receptores no nosso organismo.

 

MidiaNews – Em quais situações o canabidiol é receitado?

Viviane Quixabeira – O que temos de evidência científica é que o canabidiol realmente é efetivo em alguns tipos de epilepsia. Então, prescrevemos para crianças que já usaram outras medicações disponíveis no mercado.

 

O canabidiol, que usamos a sigla CBD, é um dos mais de cem canabinoides presentes na planta Cannabis sativa. Ele é o principal constituinte da planta.

 

MidiaNews – Qual o perfil dos pacientes que precisam do tratamento com canabidiol?

Viviane Quixabeira – Temos usado com as epilepsias de difícil controle, que são crianças que apresentam crises epiléticas classificadas como refratárias. A partir do momento que tentamos as medicações disponíveis e a criança não tem controle das crises, classificamos como epilepsia refratária ou de difícil controle. 30% dessas crianças não controlam as crises com a medicação disponível nas farmácias.

 

MidiaNews – O tratamento com canabinoides tem riscos?

Viviane Quixabeira – Sim. Nós, médicos, trabalhamos com evidências científicas. O canabidiol tem ação no sistema nervoso central e há evidências que ele trata algumas doenças, como epilepsias, espaticidades, dores crônicas e escleoroses múltiplas. Usamos como opção de tratamento para crianças que já usaram todo o tipo de outras medicações disponíveis no mercado.

Muita gente cria a ideia de que é uma planta, que é natural e não tem efeito colateral. Sabemos que não é bem assim. O canabidiol tem efeitos já documentados na literatura que ele causa alteração das enzimas hepáticas no fígado, diarreia, fadiga, vômito e sonolência. É criado o mito de que ele é o salvador da pátria. Antigamente, quando as questões do canabidiol surgiram na mídia, muitas famílias começaram a produzir em casa com autorização do governo, mas atualmente não recomendamos mais isso. Não sabemos as porcentagens de CDB e THC dessas plantações.

Não sabemos quanto vem dessas plantações, as porcentagens de CDB e THC, por isso não indicamos. Para o tratamento das crises, sabemos que o CDB tem que ser puro, em uma dosagem superior a 96%, com pouca porcentagem de THC, porque ele dá um efeito psicotrópico, o que não é legal para as crianças, então não recomendamos o uso, porque ele tem efeitos colaterais e as famílias têm que estar cientes disso.

 

MidiaNews – Pode explicar a diferença entre o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabinol (THC)?

Viviane Quixabeira – A Cannabis sativa tem muitas substâncias dentro dela. O canabidiol foi estudado e visto que ele tem poder medicinal e que nosso organismo tem receptores para ele. O THC é uma outra substância que está dentro da cannabis e que tem um efeito psicotrópico. 

O que as pessoas têm que entender é que pegamos uma planta, dentro dela existem muitas substâncias, e dentre elas está o canabidiol e o THC, mas o canabidiol é o que realmente tem ação dentro do nosso organismo com os receptores que estão no sistema nervoso central.

O THC é aquela parte da substância que daria realmente a alucinação, o uso mais recreativo, não tendo efeito no uso medicinal, mas quando vamos estudar, sabemos que o canabidiol é medicinal e o THC não, só que a planta em si tem uma infinidade de substâncias, até tóxicas, por isso não gostamos da produção artesanal, porque não sabemos o que está vindo dali.

 

MidiaNews – Quanto custa, em média, os medicamentos canabinoides?

Viviane Quixabeira – Antigamente, era muito caro, porque era importado. Girava entre R$ 2 mil a R$ 4 mil. Era muito caro para uma família manter, por isso era necessário o uso judicial. Mas, agora, vem aumentando o número de empresas [que produzem], porque é um mercado muito rentável. É um mercado financeiro que tem recebido muito investimento.

Hoje varia muito. Empresas boas, que tem autorização, variam o preço entre R$ 500 a R$ 2 mil. Na farmácia, há a marca de um laboratório que já vende o canabidiol em uma porcentagem de duzentos miligramas por mililitro que custa em média R$ 2 mil.

  


"O canabidiol acaba sendo, realmente, uma opção, mas quando já tentamos os métodos tradicionais"

MidiaNews – Qual o grau de melhora nos quadros das crianças a partir do uso do canabidiol?

Viviane Quixabeira – As crianças melhoram o controle de crise. Não vou dizer que existe uma melhora de 100%, mas, quando falamos de epilepesia refratária, estamos falando de crises diárias, chegando de dez a cinquenta por dia.

Vejo, na minha prática clínica, uma melhora. Aquela criança que tinha quinze crises por dia, agora passa a ter duas ou três. Para a família, já é maravilhoso. Também há famílias que relatam melhoras nas questões cognitivas e na parte comportamental. Além disso, vemos muitas mães falando que querem usar como primeira opção. Não é a nossa primeira opção. Primeiro, tentamos o que tem disponível no mercado para aquela patologia.

Além da epilepsia, existem outras patologias na neurologia que às vezes usamos também, como transtorno do desenvolvimento e alterações comportamentais como o transtorno do espectro autista. Para aquela criança que têm vários sintomas relacionados, que é agressiva, que tem várias crises sensoriais, que se bate, que faz a automutilação, às vezes usamos medicações para tentar ajudar a criança.

O canabidiol acaba sendo, realmente, uma opção, mas quando já tentamos os métodos tradicionais. Não prescrevemos como primeira opção, porque não é o correto.

 

MidiaNews – Acha que o receio com o canabidiol, tanto da sociedade quanto da comunidade científica, acontece mais pela questão cultural, relacionada ao preconceito ou por ausência de evidências científicas?

Viviane Quixabeira – Por ausência de evidências. Como eu estava falando do THC, surgiram alguns estudos falando que ele é epileptogênico, o que significa que é uma medicação que atua no cérebro e favorece a crise. Por exemplo, a pessoa não tem nenhuma pré-disposição a ter convulsão, mas ela usa aquela medicação à base de THC, podendo desencadear as crises. Só que isso ainda não está oficialmente notificado.

Em relação à epilepsia, as evidências científicas estão muito mais avançadas e temos muito mais liberdade para fazer laudos e solicitações. Em relação às outras patologias, como o autismo, ainda não temos evidências científicas para fazer um laudo e apresentar ao juiz, pedindo que a criança use.

  

MidiaNews – Percebe uma melhora efetiva nessas crianças com o uso do canabidiol?

Viviane Quixabeira – É muito variável. Nós sabemos da literatura que o canabidiol é uma medicação como outra qualquer. Tem a chance de dar certo e a de dar errado. Não é sucesso para todos. A chance do canabidiol funcionar é igual qualquer outra, tem que ser feita uma observação do caso.

Tive pacientes que ficaram super bem e outros que a família desaprovou e, por isso, pararam de usar. Não é uma coisa que as pessoas falam ‘nossa, é o salvador da pátria’, porque já tive pacientes que não funcionaram com o remédio e acabei interrompendo.

 

MidiaNews – Como acha que vai ser o futuro do canabidiol no Brasil? É uma medicação que tende a se consolidar ou vai continuar sendo um debate polêmico?

Viviane Quixabeira – Acho que a tendência é se consolidar, porque sabemos que temos os receptores endocanabinoides nos quais agem no sistema nervoso central. A comunidade científica tem muitos estudos em relação a isso.

Acredito que nos próximos anos, vai se consolidar como medicação e isso vai diminuir custos em longo prazo, se tornando uma opção viável. Mas como os estudos demoram, não será tão rápido assim.

MidiaNews – Quais são as dúvidas e temores dos pais cujos filhos recebem indicação de tratamento com canabidiol?

Viviane Quixabeira – O custo assusta e o acesso à medicação é bem difícil. Não é todo mundo que tem condições de bancar um tratamento acima de R$ 2 mil. Tem também toda a questão judicial, sendo que às vezes precisa de advogado. Tem uma burocracia grande. O que assusta é a forma de acesso, pelos preços e burocracias.

O segundo ponto é essa dúvida de ‘posso usar um óleo artesanal?’. Não recomendamos mais. Em algum momento, já foi usado, mas não é recomendado.

Às vezes, eles têm medo de que vicie. Acho que o principal é saber orientar que precisa de um laboratório de qualidade, de onde é extraído...

 

Fonte: Midia News


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